ESTRANHA MAS CERTA PREMONIÇÃO


Transcrevo uma narrativa de Armando Pires que foi Fur Mil Enf da CCS/BCaç 2861, 1968/1970 que esteve em Bula, onde conviveu com camaradas do Pel Rec AML  2024 e do ERec AML 2454, publicada a 9 de setembro de 2012, no blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", que merece uma leitura atenta da sua versão integral, bem como de outros textos ai publicados pelo autor.

A particularidade deste texto é também a de o mesmo descrever o acontecimento que esteve na origem da morte do Sol Maq  Bento Lemos Esperança, a quem prestamos homenagem. 


"A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança"

O autor começa por descrever o início da noite de 15 de abril de 1969, quando o foram buscar ao quartel de Bula para o que seria uma sessão de fados.

"Ofegantes os noventa cavalos da velha GMC galgaram a cancela do aquartelamento e estancaram às dez rodas em frente ao bar. Ao lado do condutor ergueu-se o Caeiro (um sargento velhinho) e gritou-me:
-Salta paráqui, ó pira, que esta noite vai haver espectáculo no Esquadrão."

E ao contrário do que esperaria, a GMC, disparou na direcção da estrada de Binar e não na direcção do Esquadrão.

" (...) mas chegados ao fim da Vila contornámos Bula por fora, pelo lado de Sanhar e Ponta Alfama, seguimos sempre pela orla da bolanha  (gente atrevida, como se saberá mais à frente), como se em direcção ao Dingal, tornámos a entrar na estrada e eis-nos chegados ao aquartelamento  do Esquadrão de Reconhecimento AML 2454."

Mas o começo desta história estava na sua chegada a João Landim, com poucos dias de Guiné, onde fora reconhecido por um amigo e conterrâneo ribatejano, Moncada Cordeiro, Fur Mil no Pel Rec AML, " (...) e estava ali como parte da escolta que havia de garantir a nossa segurança até ao Quartel de Bula."

Tendo ficado de se encontrarem no dia seguinte, para continuar a conversa e  sabendo o seu amigo do seu jeito para cantar o fado, logo lhe disse, " (...) que eu tinha de ir lá abaixo cantar para a malta do Esquadrão." 

"Ia com estilo (a ensaiar) no segundo verso do "Bairro alto com os seus amores", quando um tiro suspende a estrofe.
-UPS!... Calma que é fogo nosso - sossegou o Caeiro, e voltámos ao fado.

Voltámos, é uma força de expressão. Ainda mal tínhamos recuperado a posição de sentados quando BUM!!, e o aquartelamento estremeceu. Afinal, o espectáculo anunciado pelo Caeiro não era o meu, ia ser aquele.

A luz apagou-se e era tudo negro à minha volta, a chapa silvava como sacudida por um furacão, gente a correr e eu sem as ver, gritos de "Vamos lá atrás, vamos lá atrás", e eu sem saber onde ficava lá atrás nem quem lá ia, as costureirinhas riscavam os céus com tracejantes, a cada granada que caía, o chão sacudia como agitado por um terramoto (...).  

Eu já tinha embrulhado umas três vezes com a 2466. Uma delas na estrada de Binar foi feia, muito feia mesmo.  Três emboscadas na mesma manhã. Cinco feridos do nosso lado, Do lado de lá, entre outras baixas, a mais significativa foi a morte do comandante Nhaga, chefe do 1.º bigrupo do Choquemone, foi a 9 de Abril, seis dias antes daquele ataque dirigido, particularmente, contra o Esquadrão, e que foi, soube-se depois, represália pela morte do Nhaga.

Portanto, eu já sentira o cheiro da pólvora, mas naquela ainda não me vira. Era o meu primeiro ataque dentro do quartel. E no dia do baptismo, via-me "fora de casa", as escuras, sem ninguém para me dizer que fazer ou para onde ir.

(...) Lá fora ouvi alguém dizer que o Esperança tinha morrido.

(...) Soubemos que naquela viagem nocturna, com o Caeiro aos gritos, entre o aquartelamento de Bula e "as Panhard", passámos mesmo nas barbas da força do PAIGC que aguardava a hora de atacar.

E soubemos como morreu o Esperança. O soldado maqueiro do Pel Rec  2024, Bento Lemos Esperança, estava no bar com outros camaradas, celebrando o seu aniversário, quando se iniciou o ataque. Saiu em direcção à enfermaria mas, para atalhar caminho, em vez de ladear o morro subiu-o para atravessar a parada. Foi morto pelo rebentamento, ali à sua frente, de uma granada de morteiro.

Os dias que se seguiram foram muito difíceis para os homens do EREC. Não esqueço as lágrimas que vi, naquela noite, nos olhos do capitão Monge."

O texto deste camarada narra ainda o que teria sido a premonição deste militar no dia de embarque, ao proclamar "que morreria e nunca mais voltaria a ver a sua filha."




























Sem comentários:

Enviar um comentário